Justiça e Paz celebra a Páscoa de Lília Azevedo Entre os grandes personagens que a Família Dominicana ofereceu para a Igreja de base do Brasil, sem dúvida se destaca o nome de Lília Azevedo.
Homenaje a Lilia Azevedo
Entre os grandes personagens que a Família Dominicana ofereceu para a Igreja e a cultura do Ocidente, sem dúvida se destaca o nome de Santa Catarina de Siena. Leiga, filha de família de posses, se dizia sempre com e em Cristo. Cuidou dos enfermos e abandonados até quando Cristo lhe revelou que ela deveria trabalhar pela paz. A partir de então empenhou-se para a unidade da Igreja através do retorno do papa Gregório XI a Roma, o que ocorrera em 1378.
Analfabeta, ditara centenas de cartas para as mais diferentes personalidades da época, entre papas, reis e líderes do povo, indistintamente. Algumas dessas cartas estão reunidas na obra Diálogo sobre a Divina Providência, um grande testemunho de sabedoria, teologia e mística, que se tornou o seu legado.
Entre os grandes personagens que a Família Dominicana ofereceu para a Igreja de base do Brasil, sem dúvida se destaca o nome de Lília Azevedo. Leiga, filha de família de posses, se mostrava sempre com e em Deus, a quem nos seus últimos tempos se referia simplesmente com o sereno epíteto de "Deusa". Acompanhou os movimentos sociais e as pastorais, as greves e as mobilizações do povo, porque Cristo lhe havia revelado a missão de trabalhar pela solidariedade.
Empenhou-se para a unidade dos povos, através do apoio solidário e do intercâmbio de informações, do estudo e da luta pelos direitos humanos. Poliglota, traduziu e escreveu centenas de cartas para as mais diferentes personalidades de sua época, entre autoridades, políticos e líderes do povo, indistintamente. Algumas dessas cartas estão reunidas na obra Cartas da África do Sul, uma experiência do apartheid e o recente Cartas Solidárias, dois testemunhos de sabedoria, teologia e mística que se tornaram o seu legado.
Nascida em 1929, Lília Azevedo dividiu com Catarina, mais do que uma biografia. As duas mulheres leigas tiveram em comum os desafios e a coragem, a mística e o empenho, o jeito próprio de entender a fé, a Igreja, as pessoas e o seu tempo. Ambas tiveram grande destreza no uso da palavra, a escrita e a falada: ainda que uma analfabeta e a outra poliglota, dividiram com outros, solidariamente, os resultados dos seus temores, das suas esperanças e utopias. Escreveram aquilo que viveram. Escreveram porque viveram. Por isso, o escrito de ambas não poderia ter outra forma literária que as cartas. Porque nelas são soam teorias fechadas e áridas, teologias desencarnadas ou crenças estéreis. O que se comunica é o que se vive e o que se acredita. As duas mulheres traduziram em palavras as suas paixões. E para quê? Ora, cada carta é uma convocação e uma dádiva.
Por elas somos alertados e convidados ao compromisso com a paz e a solidariedade, a justiça e os direitos de gentes com as quais nunca falamos e que por elas falam conosco. Por elas somos presenteados com o encontro dessas causas que nos tornam melhores e mais humanos, porque nos dão a chance de realizar a nossa vocação para o encontro.
Mas não pense que há nessas cartas algum culto pessoal ou a expressão subjetiva da banalidade daqueles que buscam honras. Lília, como Catarina, falou pouco de si mesma. Tinha notícias mais importantes para isso. E também se encontrava nessas notícias, confundia-se com elas de tal forma que ao falar do outro, falava mesmo de si mesma. No seu amplo apartamento da rua Haddock Lobo estão suas relíquias em forma de livros, bibelôs, preciosidades de penas e de barros.
Muito além de títulos, diplomas ou jóias, essas lembranças resumem o mundo em pequenas formas e são a prova candente do compromisso de uma mulher que, ao buscar a si mesma, se encontrou com o mundo e teve a rara e grandiosa compreensão do que é ser cidadã, cristã, humana. O doutorado de Lília, como o de Catarina, foi conquistado nessa descoberta. Isso não a faz doutora da "Igreja dos poderes", mas doutora da solidariedade dessa nossa "Igreja dos amores", que ultrapassa fronteiras, todas as fronteiras, tal como unicamente o amor é capaz.
Não envelhece aquele que acumula esse tipo de tesouro. Talvez isso explique porque Lília permaneceu perturbadoramente jovem, contra as corrosões da doença. No corpo e, principalmente na alma, a exultação e a ternura, a calma e a serenidade de suas palavras não se alteraram. E é dessa fonte que nós todos e todas pudemos beber. É essa água que animou nossas pessoas e nossas lutas. As idéias e o amor de Lília estão por detrás de muitos dos projetos que hoje dão sentido ao nosso trabalho e à nossa vida, entre os quais está a nossa Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil.
Lília foi visitada pelo Senhor que a convocou para traduzir e escrever as suas próprias cartas a toda gente com quem anda com dificuldades de comunicação. Há gente que não ouve a sua voz e há gente que não se deixa convocar por ela, nessa nova Babel do nosso mundo das dividas e das divisões.
O Senhor sabe mesmo o que faz. Caberá a Lília continuar escrevendo cartas e traduzindo em língua alada as mensagens que nos indiquem os caminhos da solidariedade com os pobres e excluídos da sociedade. Seus informes de vida falarão das lutas dos negros da África, dos indígenas de Chiapas e dos sem terra brasileiros, das mulheres das periferias e das vítimas de tantos regimes ditatoriais mundo afora. Do alto, sua voz se torna mais pujante, embora mais sutil.
A nós o que restará senão continuar atentos às suas notícias, abrindo os ouvidos para ouvi-la, convocá-la em orações e em lembranças mil, deixar que seus informes solidários nos desacomodem. Lília, essa mulher sem divisas, agora ultrapassou a última das fronteiras. Distante, parece ainda mais próxima. Para o resto das nossas vidas, ao abrir a caixa de entrada dos nossos emails, fiquemos atentos: haverá sempre por lá uma carta solidária enviada por essa nossa querida e inesquecível amiga.
Jelson Oliveira,
Pela Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil.